sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O AXOLOTE - JULIO CORTAZAR

Houve um tempo em que eu pensava muito nos axolotes. Ia vê-los no aquário do Jardim das Plantas e ficava horas olhando-os, observando sua imobilidade, seus imperceptíveis movimentos. Agora sou um axolote. O acaso me levou até eles numa manhã de primavera em que Paris abria sua cauda de pavão-real depois de lenta invernada. Desci pelo Bulevar de Port-Royal, tomei St. Marcel e L’Hôpital, vi os verdes entre tanto cinza e me lembrei dos leões. Era amigo dos leões e das panteras, mas nunca entrara no úmido e escuro edifício dos aquários. Deixei minha bicicleta junto às grades e fui ver as tulipas. Os leões estavam feios e tristes e minha pantera dormia. Escolhi os aquários, olhei de esguelha os peixes vulgares, até dar inesperadamente com os axolotes. Fiquei uma hora olhando para eles e saí, incapaz de outra coisa. Na biblioteca Sainte-Geneviève, consultei um dicionário e soube que os axolotes são formas larvais, providas de brânquias, de uma espécie de batráquios do gênero amblistoma. Que eram mexicanos, já o sabia por eles mesmos, por seus pequenos rostos rosados astecas e o cartaz no alto do aquário. Li que foram encontrados exemplares na África, capazes de viver em terra durante os períodos de seca, e que continuam sua vida na água ao chegar a estação das chuvas. Encontrei seu nome espanhol, ajolote, a menção de que são comestíveis e que seu azeite se usava (diria que não se usa mais) como o de fígado de bacalhau. Não quis consultar obras especializadas, mas voltei, no dia seguinte, ao Jardim das Plantas. Passei a ir todas as manhãs, às vezes de manhã e de tarde. O guarda dos aquários sorria perplexo ao receber a entrada. Me apoiava na barra de ferro que cerca os aquários e ficava a olhá-los. Não há nada de estranho nisto, porque desde o primeiro momento compreendi que estávamos ligados, que algo infinitamente perdido e distante continuava, apesar disso, nos unindo. Fôra bastante parar, naquela manhã, diante do vidro, onde umas borbulhas corriam na água. Os axolotes se amontoavam em um mesquinho e estreito (só eu posso saber quão estreito e mesquinho) piso de pedra e musgo do aquário. Havia nove exemplares, e a maioria apoiava a cabeça contra o vidro, olhando com seus olhos de ouro os que se aproximavam. Perturbado, quase envergonhado, senti como uma impudicícia aparecer a essas figuras silenciosas e imóveis, aglomeradas no fundo do aquário. Isolei mentalmente uma, situada à direita e algo separada das outras, para estudá-la melhor. Vi um corpinho rosado e parecendo translúcido (pensei nas estatuetas chinesas de vidro leitoso), semelhante a um pequeno lagarto de 15 centímetros, terminado em um rabo de peixe de uma delicadeza extraordinária, a parte mais sensível do nosso corpo. Pelo lombo corria uma barbatana transparente, que se fundia com o rabo, mas o que me fascinou foram as patas, de uma finura sutilíssima, acabadas em miúdos dedos, em unhas minuciosamente humanas. Então descobri seus olhos, sua cara. Um rosto inexpressivo, sem outro rasgo que os olhos, dois orifícios como cabeça de alfinete, inteiramente de um ouro transparente, carentes de vida, mas olhando, deixando-se penetrar por meu olhar, que parecia passar através do ponto áureo e se perder em um diáfano mistério interior. Um finíssimo halo negro rodeava o olho e o introduzia na carne rosa, na pedra rosa da cabeça vagamente triangular, mas de lados curvos e irregulares, que lhe davam uma total semelhança com uma estatueta corroída pelo tempo. A boca estava dissimulada pelo plano triangular da cara; só de perfil se adivinhava seu tamanho considerável; de frente, uma fina rachadura mal rasgava a pedra sem vida. Em ambos os lados da cabeça, onde deviam ser as orelhas, cresciam-lhe três raminhos vermelhos, como de coral, uma excrescência vegetal, as brânquias, suponho. Era o que existia vivo nele; cada 10 ou 15 segundos os raminhos se levantavam rigidamente e voltavam a baixar. Às vezes uma pata se movia lentamente, eu via os dedos diminutos pousando, com suavidade, no musgo. É que não nos agrada nos mexermos muito, e o aquário é tão pequeno; mal avançamos um pouco, nos chocamos com o rabo ou a cabeça de outro dos nossos; surgem dificuldades, brigas, fadigas. Sentimos menos o tempo se estamos quietos. Foi sua imobilidade que me fez inclinar fascinado, na primeira vez que vi os axolotes. Silenciosamente, me pareceu compreender sua vontade secreta, abolir o espaço e o tempo com uma imobilidade indiferente. Depois entendi melhor: a contração das brânquias, o tatear das finas patas nas pedras, o repentino nadar (alguns deles nadam com a simples ondulação do corpo) me provaram que eram capazes de fugir desse torpor mineral em que passavam horas inteiras. Seus olhos, sobretudo, me fascinavam. Ao lado deles, nos outros aquários, diversos peixes me mostravam a singela estupidez de seus belos olhos semelhantes aos nossos. Os olhos dos axolotes me falavam da presença de uma vida diferente, de outra maneira de olhar. Colando minha cara ao vidro (às vezes o guarda tossia, inquieto), procurava ver melhor os diminutos pontos áureos, essa entrada no mundo infinitamente lento e remoto das criaturas rosadas. Era inútil bater com o dedo no vidro, diante de suas caras; jamais se percebia a menor reação. Os olhos de ouro continuavam ardendo com sua doce, terrível luz; continuavam me olhando de uma profundidade insondável, que me dava vertigem. E, apesar disso, estavam perto. Soube-o antes disto, antes de ser um axolote. Soube-o no dia em que me aproximei deles pela primeira vez. Os cortes antropomórficos de um macaco revelam, ao contrário do que acredita a maioria, a distância entre eles e nós. A absoluta falta de semelhança dos axolotes com o ser humano provou que meu reconhecimento era válido, que não me apoiava em analogias fáceis. Só as mãozinhas… Mas uma lagartixa tem também mãos assim, e em nada se parece conosco. Eu acho que era a cabeça dos axolotes, essa forma triangular rosada com os olhinhos de ouro. Isso olhava e sabia. Isso reclamava. Não eram animais. Parecia fácil, quase óbvio, cair na mitologia. Comecei a ver nos axolotes uma metamorfose que não conseguia anular uma misteriosa humanidade. Imaginei-os conscientes, escravos de seu corpo, infinitamente condenados a um silêncio abismal, a uma reflexão desesperada. Seu olhar cego, o diminuto disco de ouro inexpressivo e entretanto terrivelmente lúcido, penetrava em mim como uma mensagem: “Salve-nos, salve-nos”. Surpreendia-me murmurando palavras de consolo, transmitindo esperanças pueris. Eles continuavam me olhando, imóveis; de súbito, os raminhos rosados das brânquias se levantavam. Nesse instante eu sentia como uma dor surda; talvez me vissem, captavam meu esforço por penetrar no impenetrável de suas vidas. Não eram seres humanos, mas em nenhum animal encontrara uma relação tão profunda comigo. Os axolotes eram como testemunhas de algo, e às vezes como horríveis juízes. Sentia-me ignóbil diante deles; havia uma pureza tão espantosa nesses olhos transparentes. Eram larvas, mas larva quer dizer máscara e também fantasma. Atrás dessas caras astecas, inexpressivas e entretanto de uma crueldade implacável, que imagem esperava sua hora? Temia-os. Acho que, se não sentisse a proximidade de outros visitantes e do guarda, não me teria atrevido a ficar só com eles. “Você os come com os olhos”, me dizia rindo o guarda, que devia imaginar-me um pouco desequilibrado. Não percebia que eram eles que me devoravam lentamente pelos olhos, em um canibalismo de ouro. Longe do aquário, não fazia mais que pensar neles; era como se me influenciassem à distância. Cheguei a ir todos os dias, e de noite os imaginava imóveis na escuridão, avançando lentamente uma mão que, de súbito, encontrava a de outro. Talvez seus olhos vissem em noite escura, e o dia continuava para eles indefinidamente. Os olhos dos axolotes não têm pálpebras. Agora sei que não houve nada de estranho, que isso tinha que acontecer. Cada manhã, ao inclinar-me sobre o aquário, o reconhecimento era maior. Sofriam, cada fibra do meu corpo entendia esse sofrimento amordaçado, essa tortura rígida no fundo da água. Espiavam algo, um remoto senhorio aniquilado, um tempo de liberdade em que o mundo fôra dos axolotes. Não era possível que uma expressão tão horrível, que conseguia vencer a inexpressividade forçada de seus rostos de pedra, não levasse uma mensagem de dor, a prova dessa condenação eterna, desse inferno líquido que padeciam. Inutilmente queria provar a mim mesmo que minha própria sensibilidade projetava nos axolotes uma consciência inexistente. Eles e eu sabíamos. Por isso não houve nada de estranho no que aconteceu. Minha cara estava grudada no vidro do aquário, meus olhos tratavam uma vez mais de penetrar no mistério desses olhos de ouro sem íris e sem pupila. Via de muito perto a cara de um axolote imóvel junto ao vidro. Sem transição, sem surpresa, vi minha cara contra o vidro, em vez do axolote vi minha cara contra o vidro, eu a vi fora do aquário, do outro lado do vidro. Então minha cara se afastou e eu compreendi.
Só uma coisa era estranha: continuar pensando como antes, saber. Notar isso foi, no primeiro momento, como o horror do enterrado vivo que desperta para seu destino. Fora, minha cara voltava a se aproximar do vidro, via minha boca de lábios apertados pelo esforço de compreender os axolotes. Eu era um axolote e sabia agora instantaneamente que nenhuma compreensão era possível. Ele estava fora do aquário, seu pensamento era um pensamento fora do aquário. Conhecendo-o, sendo ele mesmo, eu era um axolote e estava em meu mundo. O horror vinha — soube-o no mesmo momento — de me acreditar prisioneiro em um corpo de axolote, transmigrado a ele com meu pensamento de homem, enterrado vivo em um axolote, condenado a me mexer lucidamente entre criaturas insensíveis. Mas aquilo acabou quando uma pata veio roçar na minha cara, quando, mal me mexendo para um lado, vi um axolote junto de mim que me olhava, e soube que também ele sabia, sem comunicação possível, mas tão claramente. Ou eu estava também nele, ou todos nós pensávamos como um homem, incapazes de expressão, limitados ao resplendor dourado de nossos olhos, que olhavam a cara do homem grudada no aquário. Ele voltou muitas vezes, mas agora vem menos. Passa semanas sem aparecer. Ontem o vi, olhou-me longamente e se foi bruscamente. Pareceu-me que não se interessava tanto por nós, que obedecia a um costume. Como a única coisa que faço é pensar, pude pensar muito nele. Ocorre-me que, a princípio, continuamos comunicados, que ele se sentia mais que nunca unido ao mistério que o preocupava. Mas as pontes estão cortadas entre ele e eu, porque o que era sua obsessão é agora um axolote, estranho à sua vida de homem. Acredito que, no início, eu era capaz de voltar de certo modo a ele — ah, só de certo modo — e manter alerta seu desejo de nos conhecer melhor. Agora sou definitivamente um axolote, e se penso como um homem é só porque todo axolote pensa como um homem dentro de sua imagem de pedra rosa. Parece-me que de tudo isto pude comunicar-lhe algo nos primeiros dias, quando eu ainda era ele. E nesta solidão final, à qual ele já não volta, consola-me pensar que talvez vá escrever sobre nós, pensando imaginar um conto, vá escrever tudo isto sobre os axolotes