sexta-feira, 23 de maio de 2014

A favela que não cabia na fotografia

No ano de 2001, quando eu ainda era um estudante do curso de jornalismo e com pretensões a fotógrafo vivi uma experiência que vale aqui ser relatada: Durante alguns meses fui estagiário em um grande jornal com sede no Rio de Janeiro. Nesse período procurava chegar o mais cedo possível na redação para acompanhar aqueles que eu considerava os “melhores” fotógrafos em suas empreitadas pela cidade. As editorias ligadas à cidade (Rio) eram as que mais me interessavam, as rondas, os casos policiais, as favelas, um certo ar de aventura. Certo dia, logo cedo, estávamos “na escuta” de um rádio da polícia que pedia reforço a outras viaturas para uma operação de emergência na Rocinha. Um grupo de policiais civis fora cercado por traficantes e estava encurralado em uma rua no alto do morro. Pegamos um carro e fomos até lá. Estávamos desorientados, sem saber para que local exatamente iríamos, outros profissionais da imprensa ainda não tinham chegado, o que nos serviria como referência. Por sorte, seguimos um grupo de policiais do BOPE (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar) que também acabara de chegar. Havia naquele momento uma grande tensão, não se sabia ao certo onde estavam os policiais encurralados e ouviam-se tiros ao longe. Era uma operação delicada e de risco. Pouca movimentação nas ruelas e nos becos, subíamos devagar. O repórter ficou para trás, prosseguimos apenas eu e o outro fotógrafo. O medo era grande, mas uma curiosidade ainda maior me movia. Aos poucos a “ordem” foi sendo estabelecida, os tiros cessaram; a chegada de mais policiais fez com que os “bandidos” recuassem. Ao longo do caminho fiz as fotos que “deveria” fazer, algumas prisões, apreensões, armas, nada além do clichê.
Mas trago comigo até hoje as imagens que eu não fiz e são essas as mais interessantes: a vida que seguia dentro das casas. A vida que eu via pelas portas entre abertas, pelas janelas. Mulheres fazendo comida, crianças preparando-se para ir à escola, senhores assistindo TV, velhas lavando roupa, gatos nas janelas. Eram de fato essas imagens que me interessavam. Aquela favela, a mim apresentada, embora numa ocasião não muito propícia, não cabia na minha fotografia. No dia seguinte as imagens que saíram estampadas no jornal eram a da prisão de alguns “traficantes” e a notícia de que os policiais haviam sido resgatados, o bem venceu o mal. E a favela ali representada foi reduzida mais uma vez a um espaço de violência, campo de lutas. Todos os moradores foram “apagados”, com exceção dos traficantes presos, que segundo os jornais se tornaram os legítimos representantes das favelas. Apagaram-se as histórias e as muitas narrativas. Fecharam-se as portas e as janelas.

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